(Escola - Valpaços)
As aulas haviam já começado, estávamos em Setembro de 1986 e o dia amanhecia límpido, prometendo ser soalheiro e agradável, apesar da geada que nesse dia fustigou os solos, cobrindo as oliveiras de um manto branco.
Após o acordar, levantei-me energicamente, bocejando sabendo que mais um dia me aguardava. Dirigi-me à cozinha onde tomei o café e comi umas torradas prazerosamente, pois estava com uma fome de leão.
Por indicações da minha mãe, mal conclui o pequeno-almoço, peguei no balde com a comida para os porcos que já havia cozido nos potes à lareira e desloquei-me para a loja onde guardávamos o porco.
Juntei ainda alguma “folhata” que no dia anterior havia colhido nos negrilhos, junto aos lameiros. A recolha da “folhata”, era uma tarefa que exigia perícia e força física, pois subir aos negrilhos é tarefa complicada mas não de todo desagradável para uma criança, que tinha em si todos os sonhos do mundo. Logo que subia me imaginava no cimo de qualquer montanha a observar o mundo cá em baixo. Sentia-me engrandecido e mais próximo de Deus.
Enchi a pia de pedra à qual juntei alguma farinha para a alimentação do porco, que seria dali a uns meses a nossa própria alimentação. Pobre animal, comia com sofreguidão não sabendo o destino que o esperava, ficando dia após dia mais cevado, ganhando um peso bastante considerável.
Concluída essa tarefa e alimentados também os coelhos e as galinhas, regressei a parte superior da casa, aprontando-me para ir à escola. Briosamente penteei o cabelo e preparei-me o melhor que sabia, vestindo a roupa que a minha mãe havia selecionado, umas calças já roçadas pelo tempo, uma camisola de lã grosseira e um casaco quente, pois lá fora estava frio.
Sai alegremente de casa e caminhei até ao largo da aldeia onde me encontrei com o Paulo Jorge e com os outros colegas, pois como sempre, esperava-nos uma caminhada de dois quilómetros até às escadavadas, local onde se situa a paragem de autocarro mais próxima da aldeia.
Tinha já 11 anos e frequentava a escola Preparatória que se situava em Valpaços, exigindo que os alunos das aldeias em redor se sujeitassem aos rigores climatológicos, para diariamente percorrerem o que referi. Além disso o autocarro não esperava apesar de os motoristas serem pessoas simpáticas e nossas conhecidas.
O percurso era percorrido com celeridade, aproveitando-se para conversar, brincar, ao mesmo tempo que se inspirava aquele al gélido da manhã, que apesar de vos parecer desconfortável era na verdade agradável pois misturava-se com as fragrâncias libertadas pelas herbáceas e arvores que rodeavam a aldeia.
Quando chegávamos à paragem, todos os momentos eram aproveitados para conviver em animada cavaqueira, numa inocência feliz que apenas as crianças conseguem ter.
Naquele tempo a maior riqueza (e de que tenho saudades – numa intensidade que me abre o peito de uma forma hercúlea) era a verdadeira amizade cultivada entre todos nós, os sorrisos verdadeiros e puros que contagiavam as nossas almas, desconhecedoras do mundo viral que nos esperava no futuro … as nossas mentes não haviam sido tocadas pela negridão das mentes adultas que viviam mais preocupadas e por vezes já tocadas pela busca incessante dos bens materiais, conspurcando os sentimentos mais puros.
(Paragem de autocarros, Valpaços)
Distraídos não havíamos visto chegar o autocarro, como sempre as meninas estavam mais atentas e a Paula logo alertou para a sua chegada, acompanhada por um apitar do transporte que nos levaria à escola. A culpa de tal distracção nesse dia foi também do João Cavaleiro que traulitava alegremente o “fado das trincheiras” que eu procurava avidamente acompanhar, mas nunca tive jeito para cantar o fado, para minha infelicidade. Já o João, admirava-o muito, além de cantar o fado de uma forma melodiosa era um menino-homem que tinha uma força de vida que eu invejava de uma forma saudável. Filho de pastores, trabalhava incansavelmente todos os dias antes e depois da escola, bem como aos fins-de-semana. Lamentava que assim fosse, pois apesar de eu também ajudar nos campos e nas tarefas de casa, sempre tinha algum tempo para me escapar e encontrar-me com os amigos. Enfim a vida era mesmo assim naquele tempo, muito dura para uma criança …
As mordomias com que hoje rodeamos os nossos filhos não existiam, éramos cinzelados à imagem daqueles tempos, aos tratos da própria vida, mas apesar de tudo muito felizes!
Como disse a Paula alertou para a chegada do autocarro e logo, ordeiramente entramos no veículo cumprimentando alegremente o motorista (penso que se chamava Sr. Costa e morava no Crasto – já lá vãos muitos anos e não me recorda muito bem dos nomes).
Escolhia sempre os lugares traseiros do autocarro, onde me juntava com o João e com o Paulo traulitando o “fado”, procurando acompanhar o ritmo. Gostava e ainda gosto do fado das trincheiras da autoria de Fernando Faria (tinha já naquele tempo um gosto inegável pela vida militar).
O soldado na trincheira, não passa duma
toupeira
Vive debaixo do chão.
Só pode ter a alegria de espreitar a luz do dia
Pela boca de um canhão.
Mas quando chegar a hora dele arrancar por aí fora
Ao som da marcha de guerra,
Seus olhos são duas brasas e as toupeiras ganham asas
Como as águias lá da serra.
Vive debaixo do chão.
Só pode ter a alegria de espreitar a luz do dia
Pela boca de um canhão.
Mas quando chegar a hora dele arrancar por aí fora
Ao som da marcha de guerra,
Seus olhos são duas brasas e as toupeiras ganham asas
Como as águias lá da serra.
Refrão :
Rastejando como sapos, com as fardas em farrapos
Pela terra de ninguém
Mas cá dentro o pensamento, corre mais alto que o vento
Quando pela nossa mãe.
E se eu morrer na batalha, só quero ter por mortalha
A bandeira nacional.
E na campa de soldado, só quero um nome gravado
O nome de Portugal.
Rastejando como sapos, com as fardas em farrapos
Pela terra de ninguém
Mas cá dentro o pensamento, corre mais alto que o vento
Quando pela nossa mãe.
E se eu morrer na batalha, só quero ter por mortalha
A bandeira nacional.
E na campa de soldado, só quero um nome gravado
O nome de Portugal.
Soldados da nossa terra, são voluntário da guerra
Que vêm bater-se por brio.
Raça de povo e de glória, que escreveu a nossa história
Nos mundos que descobriu.
Por isso a Pátria distante, brilha em nós a cada instante
Como a luz de uma candeia,
Que arde de noite e de dia no altar da Virgem Maria
Na igreja da nossa aldeia.
Que vêm bater-se por brio.
Raça de povo e de glória, que escreveu a nossa história
Nos mundos que descobriu.
Por isso a Pátria distante, brilha em nós a cada instante
Como a luz de uma candeia,
Que arde de noite e de dia no altar da Virgem Maria
Na igreja da nossa aldeia.
Rapidamente chegava à escola. A paragem de Sanfins não distava mais de cinco quilómetros de Valpaços. Era um trajecto já de si muito curto, ainda mais para quem nem sentia o tempo passar.
Ora ai estávamos nós os homenzinhos e as mulherzinhas, que se dirigiam alegremente para a escola empolgados com o encontro com os restantes amigos e colegas da escola.
Trocávamos impressões, brincávamos e claro, estudávamos sorvendo alegremente os ensinamentos que nos eram ministrados. Seria através desses ensinamentos que desabrochariam os futuros Professores; Polícias; Engenheiros; Agricultores e muitas outras profissões que seriam o garante da continuidade do nosso Portugal e das nossas próprias vidas, ainda que tal apenas nos tocasse a mente.
Nesse dia tive trabalhos manuais e aprendi a fazer um cinto com cordão de sisal, tarefa que me pareceu na altura complicada, mas logo aprendida com a paciente explicação do professor.
Num dos intervalos estava a jogar a bola, diga-se que nunca tive grande jeito para isso. Passei a bola ao João Barros (morava em Estourãos) e este num pontapé vigoroso partiu o vidro da janela. Fiquei sem reação, pálido pois sabia que iria ter coincidências, além do custo seria certamente castigado, o que para mim era o de menos. Como iria explicar à minha mãe que fui juntamente com o Barros um dos responsáveis por partir o vidro da escola. O Américo que apelidávamos de “Meco” não se mostrava nada preocupado. Sempre foi assim despreocupado ainda o é …
Fomos ao concelho directivo, temendo o castigo que iria ser imposto. Mas pasmem-se fomos apenas advertidos para não jogar naquele local junto às salas de aulas pré-fabricadas e saímos apenas com um “puxão de orelhas” verbal. Fique deveras aliviado enquanto o “Meco” apenas se ria, vá-se lá entender aquela cabeça!
O dia sumiu-se rapidamente … logo regressei a casa no autocarro acompanhado pelos amigos e colegas da aldeia, invertendo a rotina matinal!
Assim se findou mais um dia na vida de uma criança, preparando-se ansiosamente para o raiar de um novo dia!
João Salvador – 15/09/2012