sábado, 15 de setembro de 2012

Idas para a escola

(Escola - Valpaços)

As aulas haviam já começado, estávamos em Setembro de 1986 e o dia amanhecia límpido, prometendo ser soalheiro e agradável, apesar da geada que nesse dia fustigou os solos, cobrindo as oliveiras de um manto branco.

Após o acordar, levantei-me energicamente, bocejando sabendo que mais um dia me aguardava. Dirigi-me à cozinha onde tomei o café e comi umas torradas prazerosamente, pois estava com uma fome de leão.

Por indicações da minha mãe, mal conclui o pequeno-almoço, peguei no balde com a comida para os porcos que já havia cozido nos potes à lareira e desloquei-me para a loja onde guardávamos o porco. 

Juntei ainda alguma “folhata” que no dia anterior havia colhido nos negrilhos, junto aos lameiros. A recolha da “folhata”, era uma tarefa que exigia perícia e força física, pois subir aos negrilhos é tarefa complicada mas não de todo desagradável para uma criança, que tinha em si todos os sonhos do mundo. Logo que subia me imaginava no cimo de qualquer montanha a observar o mundo cá em baixo. Sentia-me engrandecido e mais próximo de Deus.

Enchi a pia de pedra à qual juntei alguma farinha para a alimentação do porco, que seria dali a uns meses a nossa própria alimentação. Pobre animal, comia com sofreguidão não sabendo o destino que o esperava, ficando dia após dia mais cevado, ganhando um peso bastante considerável. 

Concluída essa tarefa e alimentados também os coelhos e as galinhas, regressei a parte superior da casa, aprontando-me para ir à escola. Briosamente penteei o cabelo e preparei-me o melhor que sabia, vestindo a roupa que a minha mãe havia selecionado, umas calças já roçadas pelo tempo, uma camisola de lã grosseira e um casaco quente, pois lá fora estava frio. 

Sai alegremente de casa e caminhei até ao largo da aldeia onde me encontrei com o Paulo Jorge e com os outros colegas, pois como sempre, esperava-nos uma caminhada de dois quilómetros até às escadavadas, local onde se situa a paragem de autocarro mais próxima da aldeia. 

Tinha já 11 anos e frequentava a escola Preparatória que se situava em Valpaços, exigindo que os alunos das aldeias em redor se sujeitassem aos rigores climatológicos, para diariamente percorrerem o que referi. Além disso o autocarro não esperava apesar de os motoristas serem pessoas simpáticas e nossas conhecidas. 

O percurso era percorrido com celeridade, aproveitando-se para conversar, brincar, ao mesmo tempo que se inspirava aquele al gélido da manhã, que apesar de vos parecer desconfortável era na verdade agradável pois misturava-se com as fragrâncias libertadas pelas herbáceas e arvores que rodeavam a aldeia. 

Quando chegávamos à paragem, todos os momentos eram aproveitados para conviver em animada cavaqueira, numa inocência feliz que apenas as crianças conseguem ter. 

Naquele tempo a maior riqueza (e de que tenho saudades – numa intensidade que me abre o peito de uma forma hercúlea) era a verdadeira amizade cultivada entre todos nós, os sorrisos verdadeiros e puros que contagiavam as nossas almas, desconhecedoras do mundo viral que nos esperava no futuro … as nossas mentes não haviam sido tocadas pela negridão das mentes adultas que viviam mais preocupadas e por vezes já tocadas pela busca incessante dos bens materiais, conspurcando os sentimentos mais puros.

(Paragem de autocarros, Valpaços)


Distraídos não havíamos visto chegar o autocarro, como sempre as meninas estavam mais atentas e a Paula logo alertou para a sua chegada, acompanhada por um apitar do transporte que nos levaria à escola. A culpa de tal distracção nesse dia foi também do João Cavaleiro que traulitava alegremente o “fado das trincheiras” que eu procurava avidamente acompanhar, mas nunca tive jeito para cantar o fado, para minha infelicidade. Já o João, admirava-o muito, além de cantar o fado de uma forma melodiosa era um menino-homem que tinha uma força de vida que eu invejava de uma forma saudável. Filho de pastores, trabalhava incansavelmente todos os dias antes e depois da escola, bem como aos fins-de-semana. Lamentava que assim fosse, pois apesar de eu também ajudar nos campos e nas tarefas de casa, sempre tinha algum tempo para me escapar e encontrar-me com os amigos. Enfim a vida era mesmo assim naquele tempo, muito dura para uma criança …

As mordomias com que hoje rodeamos os nossos filhos não existiam, éramos cinzelados à imagem daqueles tempos, aos tratos da própria vida, mas apesar de tudo muito felizes!

Como disse a Paula alertou para a chegada do autocarro e logo, ordeiramente entramos no veículo cumprimentando alegremente o motorista (penso que se chamava Sr. Costa e morava no Crasto – já lá vãos muitos anos e não me recorda muito bem dos nomes). 

Escolhia sempre os lugares traseiros do autocarro, onde me juntava com o João e com o Paulo traulitando o “fado”, procurando acompanhar o ritmo. Gostava e ainda gosto do fado das trincheiras da autoria de Fernando Faria (tinha já naquele tempo um gosto inegável pela vida militar). 

Lá seguia eu e os amigos procurando acompanhar a letra:


O soldado na trincheira, não passa duma toupeira 
Vive debaixo do chão.
 
Só pode ter a alegria de espreitar a luz do dia
 
Pela boca de um canhão.
 
Mas quando chegar a hora dele arrancar por aí fora
 
Ao som da marcha de guerra,
 
Seus olhos são duas brasas e as toupeiras ganham asas
 
Como as águias lá da serra.
Refrão : 
Rastejando como sapos, com as fardas em farrapos
 
Pela terra de ninguém
 
Mas cá dentro o pensamento, corre mais alto que o vento
 
Quando pela nossa mãe.
 
E se eu morrer na batalha, só quero ter por mortalha
 
A bandeira nacional.
 
E na campa de soldado, só quero um nome gravado
 
O nome de Portugal.
Soldados da nossa terra, são voluntário da guerra 
Que vêm bater-se por brio.
 
Raça de povo e de glória, que escreveu a nossa história
 
Nos mundos que descobriu.
 
Por isso a Pátria distante, brilha em nós a cada instante
 
Como a luz de uma candeia,
 
Que arde de noite e de dia no altar da Virgem Maria
 

Na igreja da nossa aldeia.


Rapidamente chegava à escola. A paragem de Sanfins não distava mais de cinco quilómetros de Valpaços. Era um trajecto já de si muito curto, ainda mais para quem nem sentia o tempo passar.

Ora ai estávamos nós os homenzinhos e as mulherzinhas, que se dirigiam alegremente para a escola empolgados com o encontro com os restantes amigos e colegas da escola. 

Trocávamos impressões, brincávamos e claro, estudávamos sorvendo alegremente os ensinamentos que nos eram ministrados. Seria através desses ensinamentos que desabrochariam os futuros Professores; Polícias; Engenheiros; Agricultores e muitas outras profissões que seriam o garante da continuidade do nosso Portugal e das nossas próprias vidas, ainda que tal apenas nos tocasse a mente. 

Nesse dia tive trabalhos manuais e aprendi a fazer um cinto com cordão de sisal, tarefa que me pareceu na altura complicada, mas logo aprendida com a paciente explicação do professor. 

Num dos intervalos estava a jogar a bola, diga-se que nunca tive grande jeito para isso. Passei a bola ao João Barros (morava em Estourãos) e este num pontapé vigoroso partiu o vidro da janela. Fiquei sem reação, pálido pois sabia que iria ter coincidências, além do custo seria certamente castigado, o que para mim era o de menos. Como iria explicar à minha mãe que fui juntamente com o Barros um dos responsáveis por partir o vidro da escola. O Américo que apelidávamos de “Meco” não se mostrava nada preocupado. Sempre foi assim despreocupado ainda o é … 

Fomos ao concelho directivo, temendo o castigo que iria ser imposto. Mas pasmem-se fomos apenas advertidos para não jogar naquele local junto às salas de aulas pré-fabricadas e saímos apenas com um “puxão de orelhas” verbal. Fique deveras aliviado enquanto o “Meco” apenas se ria, vá-se lá entender aquela cabeça!

O dia sumiu-se rapidamente … logo regressei a casa no autocarro acompanhado pelos amigos e colegas da aldeia, invertendo a rotina matinal!

Assim se findou mais um dia na vida de uma criança, preparando-se ansiosamente para o raiar de um novo dia!


João Salvador – 15/09/2012

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Povo que morre de pé


Olha amigo Miguel Torga, este é o teu (nosso) povo que definha lentamente de pé, acorrentado a dívidas contraídas de uma forma irresponsável e banhadas por governantes incompetentes que alimentaram sevícias de chico-espertos (espalhados por todo o país, desde autarquias; juntas de freguesia; Tribunais; polícias e tantos outros locais de empresas públicas e privadas), que se gabam de fugir aos impostos. 

As elites continuam a olhar-nos de cima do seu púlpito, confortavelmente instalados, assobiando para o lado vendo a banda passar e o povo a definhar ...

Com estas políticas miseráveis; repugnantes; asquerosas; e imorais que os políticos estão a impor ao povo (não abdicando eles e os sanguessugas que os ladeiam, das suas mordomias), matam-nos lentamente de fome, empobrecendo-nos, aumentando o estado de revolta interior de cada um que começa a falar mais alto, como um vulcão em erupção. 

Os próprios pilares da democracia estão a ser minados com a corrupção que grassa no seio da sociedade portuguesa, levando este estado de coisas a deteriorar as entidades que são o garante da lei e da ordem, também estes aturdidos com tamanhas injustiças e falta de equidade e igualdade nos sacrifícios. Estes revoltados em ebulição dotados de meios sombrios para qualquer acto mais desesperante ...

Como pode o povo explicar a um filho que não se pode ir passear porque a gasolina está cara; que não pode ter roupa nova porque o dinheiro não chega; que não pode comer carne porque é cara; que não pode comprar os livros da escola; que não pode ir para a universidade sendo agora um luxo dos mais abonados (pois não tem dinheiro para livros; propinas e estadias) que não pode ter brinquedos porque o dinheiro comeu-o o estado gordo e despesista que andamos a alimentar resignados, como os cordeiros, ruminando a revolta e engolindo-a.

As pessoas começam a estar fartas disto, não por fazerem sacrifícios mas por serem sempre os mesmos - o mexilhão a curvar-se perante o poder da banca e das elites protegidas, estes sim os verdadeiros culpados da crise e que nada fazem para a resolver, como contribuir para a suster.

O povo volta a emigrar desiludido com o (não) futuro do país, baixando os braços resignados de dor, desiludidos com uma pátria com história que mercê destes politiqueiros, paridos do 25 de Abril que nada mais souberam fazer que rapaz o tacho, agora vazio (falta apenas comerem os restos). Onde estão os ideais da revolução, ou foi ela um mero ardil para alguns encherem o bolso e viverem à grande? 

Olhem para o meu interior, o meu berço, quase sem população jovem; população cada vez mais envelhecida, sem trabalho, sem escolas, sem hospitais ... sem nada. Estão a matar-nos aos poucos. Que lhes resta voltar à terra e ao cultivo ancestral com a tração animal. Sim! porque com o preço de combustível (cujo lucro reverte para as grandes empresas e para o estado) não há quem resista. 

Das duas uma ou emigramos como nos anos áureos de miséria de 1965, ou perdemos a cabeça com a ralé política ... que vão para o raio que os parta, isto é demais!. Desculpem-me o impropério mas são uns "Chulos", sem vergonha!



sábado, 8 de setembro de 2012

Vidas


(Na companhia da Ti Isolina e do Ti Aires)

Tempos passados
Tempos lembrados
Saudades antigas
Pessoas sofridas

Que bem me lembro
daqueles tempos
em que um sorriso do vizinho
me alegrava o dia

Segundos pais que me criaram
Cuidavam como se deles fosse
sempre os guardo no coração

Na aldeia que é meu berço
se mantêm tão distinto casal
que me orgulho de visitar!


João Salvador

sábado, 1 de setembro de 2012

Caminhos da vida rural




Caminhas altiva pelas ruas da aldeia
Nada te para no caminho da vida
A idade olha-te de cima, amedronta-te
Enfrentas a labuta da vida, heroína
Não tens medo à vida nem à morte
Abraçá-la-ás quando o momento o ditar.

Vives uma alegria que contagia,
Numa vida dura mas honrada
Envergonhas os reis palacianos
E os governantes sem honra …

Tens por companhia os aromas da aldeia
Os cabritos que se passeiam e te miram
Curiosos, rodeiam-te interrogativos
Tu caminhas, segues descalça, sem dor
Transportando a lenha que colhes-te
Segues pensativa, ruminas memórias
Mas, sempre acordada na vida …

João Salvador – 01/09/2012