domingo, 26 de agosto de 2012

Crónica da vida e morte do João Moleiro - Memórias


I – Memórias

O dia amanheceu tempestuoso, soprando o vento com uma intensidade descomunal, rasgando o vale da aldeia, fustigando as vinhas e as oliveiras sem contemplação. Os relâmpagos iluminavam os céus, gritando aos homens, obrigando-os a espiar os seus pecados. As crianças assustadas escondiam-se debaixo das saias das mães, temendo o castigo da mão de Deus.

Surgia assim aquele dia triste de finais de Novembro de 1972, em que as condições meteorológicas, impediam as labutas das gentes da aldeia de Sanfins.
Manteve-se assim durante grande parte do dia, caindo uma chuva bastante intensa.
Apesar da intempérie a vida não podia parar. O João Moleiro, saiu do moinho e deslocou-se ao açude para aliviar a fúria das águas, que ameaçavam transbordar. Seguiu pelo carreiro e fechou a cancela da levada que transporta a água para o moinho, para evitar a catástrofe.



Caminhava curvado perante a fúria dos ventos e das chuvas, mas não se vergava perante o tempo que o chicoteava, apenas o fazia perante Deus, quer na missa de Domingo quer aquando das preces que fazia com a família antes das refeições.
Após ter conseguido os seus intentos, verificando o açude; as levadas e libertado o curso da água de alguns detritos regressou ao moinho, onde o aguardava a mulher e os filhos, expectantes e preocupados.
Nesse dia tinha pouco cereal para moer, pois os fregueses perante o temporal que já fustigava as terras do Norte à alguns dias, não havia dado descanso a ninguém. Impedia assim o transporte do cereal para o moinho e a sua entrega após ser moído.
Era dinheiro que se não fazia com a maquia que retirava do alqueire, mas obedecia aos caprichos da natureza, que obrigava os estômagos a uma mais magra refeição, composta de uma malga de caldo com um cibo (bocado) de pão, ou por papas de milhos, apreciadas pelos filhos que as devoravam com prazer.
A rotina não parava, moía-se o resto do cereal que havia para esse dia, numa das duas mós do moinho, construído pelas mãos calejadas de seus pais. Entretanto a mulher, começava a picar as pedras juntamente com os dois filhos mais velhos, enquanto os mais pequenos dormitavam na cama improvisada no moinho, cobertos por uma partícula de farinha, alheios à intempérie e à vida dura que os esperava.  
Manteve-se assim o dia até ao escurecer, melhorando apenas durante a madrugada. Foram dias complicados, em que a tempestade teimava em não abrandar. Até os animais domésticos sofreram com a intempérie visto que o galinheiro e os currais ficaram alagados. O pobre do burro ficou todo molhado, pois partiram algumas das telhas de barro, fruto da queda de alguns ramos de pinheiro. 

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